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O advogado como mero expectador na colaboração premiada

Autor: Amanda Da Mata | 26/07/2022
Os episódios midiáticos envolvendo a colaboração premiada me despertam honestas dúvidas sobre o tema. Uma delas me assola especialmente: o papel do advogado enquanto defensor de direitos e garantias fundamentais – portanto, irrenunciáveis – no acordo de colaboração.
A colaboração premiada está prevista no seio da Lei de Organizações Criminosas, nº 12.850. Esta lei prevê outros institutos interessantes, como o da ação controlada e do agente infiltrado. Mas, de volta ao nosso corte epistemológico, retornemos ao papel do advogado nos pactos de colaboração.
A colaboração premiada está prevista na Seção I da mencionada lei, entre os artigos 4º e 7º. Portanto, se você tem alguma dúvida sobre o instituto, a resposta deve estar aí. Se não está, é porque não há – e vem sendo construída à unha por nossos parciais e responsáveis, nada heróis, operadores do direito.
Pois bem. O prêmio pela colaboração pode consistir em perdão judicial, redução em até 2/3 da pena privativa de liberdade ou substituição por restritiva de direitos.
Sob algumas condições: colaborar efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, conjuntamente com a obtenção de um ou mais resultados: identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Em qualquer caso, a concessão do prêmio pela colaboração considerará, ainda, a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do crime e, novamente, a eficácia da colaboração.
Ainda falando de prêmios, o Ministério Público pode deixar de oferecer a denúncia desde que o colaborador não seja o líder da organização e/ou quando for o primeiro a prestar efetiva colaboração.
Além disso, se a colaboração for após a sentença, a pena pode ser reduzida até a metade ou admitida a progressão de regime mesmo na ausência dos requisitos objetivos (cumprimento de determinada quantidade da pena).
O juiz não participa das negociações de colaboração. As partes legítimas são delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
É aqui, no parágrafo 6º do artigo 4º da lei, a primeira aparição do advogado nos pactos de colaboração.
Aparecerá novamente quando, para a homologação do acordo, o juiz quiser ouvir o colaborador. Mais uma vez, indispensável a presença de seu defensor.
Depois de homologado o acordo, o colaborador pode, ainda, ser chamado pelo Ministério Público (ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações), mas sempre acompanhado de seu defensor. É claro.
Com o devido acatamento aos fãs do instituto e de sua aplicação, eu pergunto: para que a presença do advogado se justamente as garantias que investigação e processo não podem violar – e para impedir isto ele estaria ali – são as necessariamente renunciadas pelo colaborador para que a colaboração tenha validade ou seja minimamente atrativa?
É bem verdade que a lei prevê o direito de retratação da proposta, hipótese em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.
Mas qual é a efetividade disso se, até em caso de rescisão do acordo, as provas podem ser mantidas como válidas?
A meu ver, a previsão da figura do defensor nas ocasiões listadas é o mínimo, mas absolutamente inócua, já que a investigação pode fazer – e faz – o que quiser com o colaborador sem prejuízo de voltar atrás nas benesses oferecidas ou nem sequer oferecê-las.
O que quero dizer é que não existe para a lei uma situação intermediária que resguarde o colaborador que, bem-intencionado, fornece declarações que, por fato alheio à sua vontade, têm o valor questionado em ponto ulterior das investigações.
Embora a presença do advogado seja repisada pelo texto e sua aceitação seja requisito de validade do termo de colaboração, pessoalmente não acredito que sobre muito espaço para desempenhar seu papel de essência, o de defensor de garantias. Uma vez que se colocar como protetor inabalável delas inviabiliza o próprio acordo.
É fato sabido que criminalistas gozam de papel ainda mais essencial à democracia porque, nos momentos mais tensos, colocam-se entre os abusos do poder público e a integridade de seus assistidos.
Quando o próprio averiguado-indiciado-réu acredita que deve se resignar à completa mercê do sistema de justiça criminal (exatamente como lhe exige o instituto da colaboração premiada), emerge o defensor para lembrar ao Estado seus limites.
Ocorre que, diante da aplicação brasileira da colaboração premiada, tudo parece funcionar como uma grande armadilha jurídica da qual o advogado também é alvo.